quarta-feira, 29 de agosto de 2012

«Estou a arder. Salvem-me!»



«[...]
Em meia hora a devastação já não pôde ser vencida pela duvidosa eficiência da equipagem; e metade das baleeiras tinha ardido. Quando o comandante Vicq ordenou a concentração em todos os barcos de salvamento disponíveis, havia mortos confirmados e desaparecidos. Se transcrevermos parte do discurso directo que em 14 de Janeiro de 1933 surgiu em L’Intransigeant, teremos uma versão dialogada da tragédia de Albert Londres. Alguém perguntou "onde estava Monsieur Londres", e salvadores improvisados gritaram: "Londres!" Ouviu-se a resposta: "Estou aqui!", e o vulto de Albert Londres surgir na varanda dos seus camarotes.
Houve incansáveis incitamentos:
"— Suba e venha juntar-se a nós!
"— Impossível — berrava ele. — Estou cercado pelo fogo. As duas extremidades do corredor dos meus camarotes estão a arder. O fogo aproxima-se.
"— Então salte! Os homens dos barcos vão buscá-lo à água."
(O Georges-Philippar tinha vários navios do tráfego do Mar Vermelho parados a distâncias mínimas de segurança e dispostos a participar no salvamento de pessoas caídas nas águas.)
"— Não vou saltar.
"— Não consegue?…
"— Consigo, mas não vou saltar."
Os que se tentavam a explicar esta recusa várias vezes repetida, admitiram as hipóteses de um bloqueamento psicológico, de Albert Londres não saber nadar, e mais romanticamente de o jornalista preferir a morte a não salvar com ele o material da sua "mais explosiva reportagem". O mesmo jornal registou o que teria sido seu último grito: "Estou a arder. Salvem-me!"
O Georges-Philippar afundou-se com Albert Londres, às 8 horas da manhã de 16 de Maio de 1932. O balanço da tragédia veio a fixar-se em 675 pessoas salvas, a parte favorável da notícia que teve de ser acrescentada com cerca de uma centena de mortos e desaparecidos.
Albert Londres — o nome célebre neste desastre — alimentou depois a surpresa, a consternação e a veia mórbida dos jornais.
[...]»

Aníbal Fernandes, in Apresentação de Albert Londres, Com os Loucos, Sistema Solar, 2012.

sábado, 25 de agosto de 2012

«"Os Manuscritos de Aspern" é uma novela perfeita.»


Uma novela perfeita, criada a partir de uma “anedota” byroniana e escrita num estilo refinado, simples e claro, em que tudo surge nas devidas proporções

Conta o tradutor Aníbal Fernandes na magnífica introdução que faz ao livro do escritor norte-americano Henry James (1843-1916), Os Manuscritos de Aspern (segundo muitos estudiosos, um dos seus melhores textos curtos), que a história que inspirou a trama ouviu-a James em Janeiro de 1887 numa das suas muitas viagens à Europa, em Florença, no Palazzo Barbaro, casa da escritora Vernon Lee, a propósito da grande quantidade de cartas de Lord Byron que uma tal condessa Gamba - visita da escritora - tinha na sua posse. Contou então o meio-irmão da escritora Vernon Lee que uma tal Miss Clairmont, que fora também amante de Byron, vivera em Florença até uma idade muito avançada, na companhia de uma sobrinha-neta 30 anos mais nova. Um dia, um capitão natural de Boston, Edward Silsbee - que sabia que as duas mulheres estavam na posse de cartas dos poetas românticos Percy B. Shelley e Lord Byron -, pôs em prática um estratagema para se apossar do espólio. Para isso, hospedou-se na casa das senhoras Clairmont esperando que a mais velha - cuja saúde estava já bastante debilitada - morresse para que ele deitasse à mão aos manuscritos. Quando a velha senhora morreu, o capitão Silsbee informou a sobrinha Clairmont dos seus propósitos. Ela respondeu-lhe que lhe entregaria todas as cartas se ele casasse com ela. Conta James nos seus The Notebooks que Silsbee “pôs-se a milhas” e não tornou a querer saber das cartas.
[...]
Esta deliciosa novela, quase em jeito de thriller recheado de elementos psicológicos, é uma espécie de “jogo do tesouro” dados os fervorosos estratagemas que o narrador aplica na busca incessante do objecto da sua devoção. Mas ao mesmo tempo - e com o final inesperado - é também uma divagação sobre a licitude (ou não) da devassa da vida privada das figuras públicas após a sua morte - o próprio James teve o cuidado de queimar, anos antes da sua morte, várias cartas que não queria que no futuro chegassem às mãos dos seus biógrafos.
[...]
Também nesta narrativa curta James não deixou de fora um dos seus temas preferidos: o confronto cultural entre a América e a Europa. Os Manuscritos de Aspern é uma novela perfeita. 
 

José Riço Direitinho, «Um Verão em Veneza», «Ípsilon» / Público, 17 de Agosto de 2012.

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

«é um livro poderoso. dos que nos entram na cabeça e nos revolvem todos os preconceitos...»


«Com os Loucos é um livro que não se assemelha a nenhum outro. encerra um misto de jornalismo com ficção com umas fronteiras tão esbatidas que é impossível perceber onde acaba um e começa outro. não percebemos quais as intenções do autor, mesmo que ele as diga no início. perdem-se também nesse mesmo nevoeiro.
[...]
é um livro poderoso. dos que nos entram na cabeça e nos revolvem todos os preconceitos e nos mostram como precisamos de pensar as situações de dentro delas para fora e não de dentro de nós para fora.
a sistema solar promete. e as introduções e traduções de Aníbal Fernandes dão-lhe o toque que faltava, sem revelar o segredo desta escrita, claro, isso é lá entre eles.
em bom portanto. a não perder de vista.»

Rosa Azevedo, Estórias com Livros.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

«Com os Loucos», de Albert Londres, por Ana Cristina Leonardo



«[...]
"Com os Loucos" é o quarto título da Sistema Solar, chancela lançada pela anterior equipa da Assírio & Alvim. Traduzido por Aníbal Fernandes, o livro tem todas as razões para ser apetecível: o editor, o tradutor... e o autor.
Albert Londres (1884-1932) foi um caso sério do jornalismo francês, cognome oficial "príncipe dos repórteres". Na apresentação de "Com os Loucos" assinada por Aníbal Fernandes, como sempre um valor acrescentado, reproduz-se este retrato: "Na sua carreira não isenta de quixotismo procurar-se-ia em vão uma reverência ao dinheiro, uma deferência para com os que governam ou financiam, a docilidade perante as ordens e as recomendações, a aceitação dos factos consumados e dos poderes estabelecidos, a fuga perante as responsabilidades."
[...]
Lê-se "Com os Loucos" e vão caindo por terra todas as supostas leis (invioláveis e maçadoras) do jornalismo de reportagem. Londres parece errático. Londres troca o realismo pela notação impressionista. Londres toma partido. Londres prefere a verdade à objectividade. Londres não conta histórias (cliché que servirá à exaustão de álibi à mediocridade e à falta de assunto), Londres vê - e o talento que é preciso para ver!» 

LER NA ÍNTEGRA


Ana Cristina Leonardo, «Oh, psiquiatria!», «Actual» / Expresso, 4 de Agosto de 2012.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Há por aí livreiros a ler e a espalhar o vírus da leitura!


«Acabámos de ler "O Senhor de Bougrelon", um daqueles romances que nos fazem lembrar que há boa literatura para além dos tempos e que sobrevive para além dos mercados.»

Joaquim Gonçalves, Livreiro d'A das Artes, de Sines.

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

«[...] nem suspeitava que tinha havido um escritor chamado Jean Lorrain que habitara a mesma casa, outrora.» Le Clézio


«Vou-vos dizer, vou-vos explicar tudo. Tinha, portanto, dez, doze anos e morava nessa velha casa que dava para o porto, um pouco napolitana, completamente a cair, com lençóis a secar a todas as janelas do pátio, gatos semi-selvagens que lutavam nos telhados e, claro, os bandos de pombos. Nesse tempo não sabia o que era um escritor, não fazia a menor ideia, nem suspeitava que tinha havido um escritor chamado Jean Lorrain que habitara a mesma casa, outrora. Recordo esta casa sobretudo na época do calor, no Verão e no começo da Primavera, porque deixávamos as janelas abertas e escutávamos o barulho dos gaivões e os arrulhos dos pombos. Mas havia especialmente um barulho que mexia comigo. Não posso verdadeiramente dizer porque é que me inquietava, mas ainda hoje quando penso nisso me arrepio e entro numa espécie de estado de melancolia e impaciência que precede o momento em que sei que terei de me sentar em qualquer lado, ali mesmo onde estou, agarrar num caderno e numa lapiseira e começar a escrever. Este barulho, eram as vozes dos jovens que chamavam uns pelos outros no pátio, que gritavam os seus nomes. Havia os rapazes que assobiavam, e os outros que metiam a cabeça à janela, e diziam: "Estás abonado?" E os de cima: "Onde é que vão?" Eles iam já não sei onde, à praia ou à feira, ou simplesmente conversar à esquina da rua, ou esperar as raparigas que saíam da escola Ségurance, isso já não tem nenhuma importância. Mas quando ouvia aqueles assobios, e os nomes que ecoavam no pátio, imaginava uma vida diferente da minha, imaginava as correrias pelo infinito das ruas, imaginava os banhos na água fria do mar, o sol, o cheiro dos cabelos das raparigas, a música dos dancings, a aventura, a noite. Nunca ouvi chamar o meu nome no pátio, nunca ouvi assobiar por mim. Eu vivia na mesma casa, mas era outro mundo. Aqui está, é por isto que eu escrevo.»

J.M.G. Le Clézio, in Libération, Março de 1985. Tradução de Ana Cristina Leonardo. AQUI, AQUI e AQUI.