quarta-feira, 22 de maio de 2013

Ray Manzarek «tocou, cantou e encantou».


Ray e Rui em Lisboa (Dezembro de 2003). Foto: © Rui Pedro Silva.


Carta aberta à comunicação social portuguesa 


RAY MANZAREK.

Raymond Daniel Manczarek, mais conhecido por Ray Manzarek, nasceu a 12 de Fevereiro de 1939 em Chicago, Illinois onde foi criado. Em 1964 conheceu Jim Morrison na UCLA (Universidade da Califórnia, Los Angeles) onde no ano seguinte se licenciaram em cinema. Nesse ano de 1965, num encontro casual na praia de Venice (Los Angeles), os jovens aspirantes a cineastas trocaram impressões e dali nasceu a ideia de criar uma banda rock. Estavam lançadas as bases daquele que viria a ser o filme principal das suas vidas. Sob as areias do Pacífico nasciam 50% dos The Doors. Cedo se percebeu que não era mais uma banda. Temas como «Light My Fire» e «Hello I Love You» enfeitiçaram a América e de seguida o mundo. Por outro lado, músicas como «Break on Through», «Five To One», «When the Music’s Over» e «The End», mostravam que os Doors penetravam fundo no «lado negro» da vida. Na realidade, sem subterfúgios, sem máscaras. A existência nua e crua com profundos rasgos artísticos onde sobressai a poesia e literatura. Jim Morrison falava sem constrangimentos. Não era azedo, era real e levava a banda consigo. Nos Doors, cada músico da banda contribuiu grandemente para a qualidade do legado, mas agora é de Ray Manzarek que se fala.

A competência artística de Ray Manzarek começou por assumir uma expressão mais pública na banda «Rick and The Ravens» (formação constituída por Ray e os irmãos), grupo que está na origem dos Doors. Ray fazia também o papel de cantor com um vozeirão inigualável. Nos Doors ele chegou a cantar, fazia segundas vozes e um bom exemplo da mais valia deste GRANDE MÚSICO aconteceu na Holanda aquando da digressão europeia dos Doors em 1968. Jim Morrison entrou a correr em plena actuação dos Jefferson Airplane (banda de São Francisco que fez a digressão com os Doors) e caiu inconsciente em palco. Foi transportado para o hospital. Aquela plateia estava ali para ver os Doors que entravam a seguir. Muita gente veio para ver Jim Morrison, o controverso Rei Lagarto. Instalou-se o pânico. Foi proposto aos outros Doors cancelar o concerto, mas Ray, Robby e John recusaram. Ray Manzarek teve um papel louvável neste processo. Não só tocou o órgão e fez as linhas de baixo como também fez o papel de Jim Morrison. Tocou, cantou e encantou.

Mais uma vez, Ray Manzarek mostrou o seu elevado calibre como músico. Que outra banda arriscaria fazer um concerto sem um vocalista com o carisma universal de Jim Morrison? São vários os exemplos que tornam os Doors únicos. Uma banda real de qualidade reconhecida que não se pode nem deve confundir com o magnetismo do vocalista.

Meus senhores e minhas senhoras… o mundo perdeu MESMO um grande músico. Aliás, um músico de excepção. Único!!! Um definidor de som, um timoneiro. Uma perda irreparável que prova que nas bandas de qualidade cada membro é mesmo insubstituível. Ninguém substituiu Jim Morrison, apenas o representaram com a devida distância… A música é a «tua amiga até ao fim», mas ficou mais ferida de morte. A agonizar. Primeiro com a partida prematura do gigante Jim Morrison, agora o gigante Ray Manzarek. Senhores de um estilo único, inimitável que marcou a música para sempre. Dançaram sobre o fogo quando a música os convidou e fizeram-no até ao fim. Para isso, Ray Manzarek muito contribuiu. Um pianista de formação clássica, apaixonado por blues. Nos Doors firmou a sua imagem de marca a tocar órgão com a mão direita enquanto com a mão esquerda reproduzia as linhas de baixo num Fender Rhodes. Sons intermináveis numa cadência alucinante que o fazia girar a cabeça em todas as direcções. Um virtuoso que espantou muita gente por ter preterido a presença de um baixista em palco. Por outro lado, proporcionou uma maior liberdade aos outros Doors e ajudou a criar um som diferente, original e hipnótico. Com os anos de treino clássico que tinha, Ray estabeleceu um padrão de qualidade exemplar. Basta ouvi-lo tocar para perceber. Em poucos minutos criou a grande abertura do clássico «Light My Fire», a assombrosa entrada de «When the Music’s Over», fazia solos que se tornaram imagem de marca na música universal e seguindo as músicas dos Doors facilmente se percebe que nenhum outro órgão poderia fazer amor com a guitarra de Robby Krieger, a bateria de John Densmore e a voz ácido/dramático/sensual de Jim Morrison. O resto é história e que história… O que a maioria das pessoas desconhece é que Ray Manzarek era muito mais que o brilhante organista dos Doors. Cantava, era produtor, teve outras bandas como os Nite City (1977/78), fazia parcerias com outros artistas, era um brilhante realizador de cinema (curso que tirou na UCLA), escritor de sucesso, etc.

Conheci Ray Manzarek em Paris. Decorria o ano de 2001, mais precisamente no dia 3 de Julho, nas celebrações dos 30 anos da morte de Jim Morrison. O momento não poderia ser mais solene. Estavam milhares de pessoas no gigantesco cemitério de Père Lachaise, onde Morrison e outras individualidades repousam. A segurança estava nervosa a tentar afastar gente eufórica que tentava chegar a Ray, Dorothy (sua esposa) e Danny Sugerman (ex-manager dos Doors e autor do best seller «Daqui Ninguém Sai Vivo»). O calor era intenso e naquele mar de corpos colados, a experiência tornava-se complicada. No final da tarde, tive o privilégio de ser um dos seleccionados para estar num tributo restrito a Jim Morrison que decorreu no teatro «Les Bouffes Du Nord». Lembro-me claramente que o primeiro momento de emoção, e foram tantos, aconteceu quando Ray Manzarek entrou e foi saudado efusivamente por centenas de pessoas de diferentes países que enchiam a parte inferior e as arcadas do antigo teatro. Ray emocionou-se e não era para menos. Ainda hoje me arrepia só de pensar naquela ovação estrondosa. Eu estava a escassos metros dele e era apenas o início de tantos momentos fabulosos. Em resumo registo os minutos mágicos quando Ray Manzarek se dirigiu ao órgão e nos brindou com um «Light My Fire» a solo e mais tarde o «Riders on The Storm». Indescritível!!!!! Só visto, escutado e sentido… uma honra que nunca esquecerei e estou certo que ninguém que lá esteve esquecerá. Ver o filme «HWY» de Jim Morrison, na íntegra, em ecrã de cinema, foi uma oportunidade única que também agradeço imenso ao Ray Manzarek e aos Doors, assim como ouvir música na altura inédita. Por fim registo a magnífica conferência de imprensa em que sem contar fui o único a ser chamado à mesa dos oradores e estive cara a cara com o Ray pela primeira vez. Ele viu a minha tese sobre o mito de Jim Morrison e disse-me que mais tarde falaríamos. «Ok, Mr Manzarek, thank you very much».

Um dia, Danny Sugerman contactou-me e disse-me: «Rui, o Ray está interessado em ler a tua tese sobre o mito de Jim Morrison». A tese estava ainda em português e obviamente que um pedido deste calibre fez-me apressar a tradução. Foi um processo complicado que surpreendentemente teve um timing certo. Em 2003, editei o meu primeiro livro sobre os Doors: «Contigo Torno-me Real». Com vários meses de antecedência ficou agendado o lançamento para 27 de Novembro. O que nem eu, nem ninguém sabia nessa altura, é que no dia seguinte ao lançamento em Lisboa (5 de Dezembro), Ray Manzarek e Robby Krieger vinham tocar as músicas dos Doors pela primeira vez a Portugal (no extinto Pavilhão Atlântico). Duas noites de concerto (6 e 7 Dezembro) que encheram as medidas a quem aprecia a música dos Doors.

Fui convidado para ficar hospedado no mesmo hotel que Ray, Robby e a banda. Nesse dia estava com Darryl Read, um bom amigo com quem temos o Ray Manzarek como amigo comum. Tive a honra de ilustrar fotograficamente o «Freshly Dug», um álbum de poesia e música do Ray e do Darryl Read. Em Lisboa, o Darryl insistiu que queria falar com o Ray e como tal antecipámos a ida ao hotel. Na recepção pediu que o chamassem, ligaram para o quarto e em poucos minutos Ray Manzarek encontrou-se connosco nos sofás de entrada. Após os cumprimentos da praxe, sentámo-nos e estivemos à conversa. Como sempre, o Ray tinha as suas histórias para contar. A dada altura apareceu Robby Krieger e Ian Astbury que se dirigiam para o exterior. Ray começou a falar de um «teste de som» e perguntou-me: «Rui queres vir agora ao nosso teste de som». Fiquei em choque. Não pelo convite mas pela «impossibilidade». Ainda sou daqueles que a palavra vale mais que um documento escrito e portanto como me tinha comprometido ir jantar com a rádio que promovia o concerto não podia voltar atrás. MAS recusar um convite feito pelo meu amigo Ray Manzarek? Soava quase a heresia. Ficámos a olhar um para o outro. Ele a rir-se à espera de resposta e eu completamente mudo. Naquele espaço chegaram duas limusinas, uma branca e uma preta, à porta do hotel. O nosso amigo Darryl Read quebrou o impasse: «Ray, o Rui vai de limusina para o concerto». O Ray olhou lá para fora, riu-se, voltou a mirar-me e disse: «Rui!!!!!!! Tu vais de limo para o concerto?». Menos satisfeito respondi: «Sim, parece que sim». E eis que ele responde: «Porra homem, nós vamos numa p*** de uma carrinha». Rimo-nos durante alguns minutos, levantámo-nos e saiu um até já. Um homem de grande humor. Já na «limo» ligou-me o Álvaro Costa e de fundo ouvia-se o Ian Astbury a cantar o «Five to One» num Atlântico completamente vazio. O Álvaro, que vinha dos Estados Unidos a acompanhar a digressão, disse-me que eles adoraram o meu livro «Contigo Torno-me Real». Achei um pouco estranho por estar em português, e mais tarde confirmei esse agrado nos bastidores e numa visita mais privada no hotel. Nunca me esquecerei o entusiasmo de todos e especialmente do Ray. A força que me deu e o desejo de ver tudo em inglês.

Seguiram-se anos de intenso trabalho, partilhas, encontros e foi assim que nasceu a versão internacional do «Contigo Torno-me Real» onde tenho a honra de contar com a presença directa de Ray Manzarek e dos outros Doors. No dia a seguir ao Atlântico estivemos em Paris para celebrar os 60 anos de Jim Morrison. Mais um manancial de histórias e da visita ao Père Lachaise registo a simpatia do Ray ao dirigir-se a mim, entre o público, agradecer-me o facto de lá estar e disse-me: «Logo à noite vais estar no concerto?». Respondi que o concerto seria no dia seguinte e ele ripostou: «Não, um concerto secreto na Bastilha para celebrar o aniversário do Jim. Diz apenas aos teus amigos». Agradeci, contei ao Gilles, um dos amigos comuns que tenho com Jim Morrison, e ao Álvaro Costa. Quando chegámos ao pequeno clube na Bastilha, a fila dava a volta ao quarteirão… tantos amigos, tão grande esta família. O concerto foi sem palco e esticando o braço tocava-se nos músicos. Um momento único, superlotado e visceralmente intimista. Lembro-me bem do Álvaro Costa completamente em transe a absorver aquelas ondas de rock a apelar ao «shaman» do rock.

Além do bom humor e generosidade com que Ray Manzarek sempre me brindou ao longo dos anos registo algo que considero incontornável na amizade, o respeito mútuo. Neste ponto narrarei um episódio ilustrativo. Quando os «Riders on the Storm» vieram novamente à Europa, fiquei de ir ter com ele e o Robby para me esclarecer uns pontos na pesquisa. O único país que coincidiu nas nossas agendas foi Espanha. Fui com um amigo e de carro rumámos à capital. Chegámos a Madrid e depois de entrar naquele espaço também superlotado chegou o pretenso momento da reunião no final do concerto. Todavia, um espanhol da organização veio ao microfone e disse aos poucos convidados que aguardavam: «Ninguém pode entrar». As gentes da câmara de Madrid e outros que lá estavam olharam-se confusos, já a dar sinais de conformismo, mas eu não me contive. Chamei-o e disse que estava ali em trabalho e não para tirar uma foto ou para autógrafos. Ele disse que nada podia fazer e respondi-lhe: «Faça o favor de ir lá dentro, diga ao Ray Manzarek que está aqui o Rui de Portugal». O homem lá foi meio descrente, enquanto no palco desmantelavam o PA. A espera foi longa e preocupante. Alguns desistiram mesmo de esperar e quando tudo parecia irremediavelmente perdido apareceu o espanhol na ponta do palco. Num sonoro sotaque disse: «Ruieee de Pórrrrtugáááále». Acenei, fez-me sinal para avançar entre os espanhóis e numa estreita porta estava um homem de grande porte que cumprimentei e reconheci de imediato, Mr Rick Manzarek, irmão de Ray Manzarek e ex-músico da banda que deu origem aos Doors. Rick estava agora investido de segurança e levou-me até aos bastidores. Quando chegámos estava o Robby Krieger a falar com gente da equipa. Cumprimentámo-nos e naquele momento o Ray Manzarek viu-me, chamou-me e deu-me um forte abraço. Falámos, fiz as perguntas, esclareci as dúvidas e na despedida agradeci-lhe a cortesia. Ele disse que os amigos não ficam à porta. Na brincadeira disse que por isso eles são os Doors. Ray piscou-me o olho e por ali ficámos uns bons minutos a conviver até depois ser levado aos bastidores mais profundos. Essas são outras histórias…

Em 2009, investido do papel de investigador internacional dos Doors, tive a HONRA de ser o único investigador residente da mítica UCLA (onde Ray Manzarek, Jim Morrison e Francis Ford Coppola se licenciaram em Cinema) para estudar e desenvolver o conhecimento das raízes dos Doors na instituição. O Ray quando soube, não só me felicitou como mais uma vez me cedeu as imagens que lhe solicitei sobre os filmes dele de estudante de cinema da UCLA. Esses belos registos figuram hoje no meu mais recente livro «Caravana Doors - Uma viagem luso-americana» (Edições Documenta), tal como anteriormente figuram outros importantes registos no «Contigo Torno-me Real» (Edições Afrontamento) que, graças à enorme generosidade de Ray Manzarek, enriqueceram sobremaneira estas minhas obras internacionais sobre os Doors.

Em suma: Quando um artista deste calibre «passa para o outro lado» cria um fosso e deixa uma perda irreparável. Uma perda que é tremendamente multiplicada quando se conhece e priva com a pessoa. Deixei com o Ray projectos inacabados, guardo as melhores recordações do músico e do amigo. Pessoalmente considero o maior dos tributos a este senhor músico, a este amigo, dar a conhecer o legado deste génio dos teclados com quem muitos senhores músicos aprenderam o que sabem, como testemunham no «Contigo torno-me Real» especialmente os baixistas que tiveram o privilégio de tocar com ele.

Só artistas desta craveira fazem da música um hino à imortalidade…

«O Rui fez um excelente trabalho».... é o comentário do Ray Manzarek ao «Contigo Torno-me Real». Como lhe disse pessoalmente… «Agradeço a simpatia e se o tem em tão boa conta é porque vocês fizeram os Doors».

Abraço cósmico Ray!!!!!!!!!

Autor Internacional dos Doors | Amigo de Ray Manzarek 




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